Parte
5
De
Irkutskt até Ulan Ude no trem Transiberiano
De
Ulan Ude até Moscou de AirBus colado com durepox e turbina estourada
Agora
rumo a Ulan Ude, perto da fronteira com a Mongólia, na república da
Buriácia, onde você encontra os buriatis, que quando crianças
parecem uns ursinhos pandas do olho puxado, bem bonitinhos e de
bochecha vermelha. É a mistura do russo com o mongol, povo mais
resistente e bravo do mundo, dizem.
O
trecho da minha viagem de trem durou cerca de nove horas, mas a
origem desse trem era Moscou, e o ponto final, a cidade de
Vladivostok, no mar do Japão. Então, quem pega essa viagem desde o
início, e vai até o final, percorre mais de nove mil quilômetros,
em sete dias ininterruptos de viagem. Essa é a Tansiberiana, que
desde criança queria ver, e é tanto trem que até um mineiro cansa.
Acho até que um mineiro nessa viagem pode ter uma overdose de tanto
trem!!
A viagem foi boa, e mesmo passando fome, acompanhei na janela esquerda as vistas do Lago Baikal, durante horas, parado no corredor do trem. Sentimentos confusos de perplexidade e incredulidade tomam espaço, pois quando eu realizo sonhos antigos como esse, tenho a sensação de não conseguir separar a realidade vista com a realidade imaginada, e uma se sobrepõe à outra, tornando-se uma névoa que busco dissipar com esforço, mas impossível de precisar com clareza, sobrando, por fim, uma sensação de completude e realização, que te faz aceitar mais facilmente sua finitude.
Chegando
em Ulan Ude, depois de muito achei meu Hostel, outra espelunquinha
barata que eu precisava para dormir. Desta vez dormi por estafa
depois de comer em um bom restaurante, tendo caminhado por meia hora
para tirar umas fotos, e nada mais, pois o principal ponto da cidade
era o busto de Lenin, maior do mundo, com quarenta e duas toneladas.
Gigantesco.
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minha higiene pessoal |
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hostel |
Dia
seguinte seria tomar café cedo e ir para o aeroporto, pegar o voo
para Moscou, para depois ir para Istambul, depois São Paulo, depois
BH. Pelo menos esse era o plano. E tudo bem tranquilo, mas não foi
tanto.
Saindo
do Hostel deixei escrito no quadro de recados meu nome, data, cidade,
e uma frase. Eu sempre me lembro dessa, inclusive já falei nestes
meus relatos, que “VIVER É NEGÓCIO PERIGOSO”, e é, mas vale a
pena.
Chegando ao aeroporto, que parecia a rodoviária de Lavras, quando no momento do embarque, fui barrado por uma policial após eu ter mostrado meu passaporte na área anterior do salão de embarque. Ela folheou várias vezes e em russo falou algumas coisas. Não adiantou nada, e depois ela falou uma palavra que todos entendem, VISA, e eu disse em inglês que eu não tinha VISA, aí a coisa piorou, e ficamos olhando um pra cara do outro.
Acontece
que ela chamou outro policial pra explicar provavelmente que eu não
tinha o visto de entrada na Rússia, e isso seria inaceitável pra
ela, eu acho.
Novamente
tentei explicar em inglês que eu não precisava de visto de entrada
pra Rússia, dizendo que eu era do Brasil. Aí sim a coisa começou a
se resolver, pois depois dos policiais conversarem bastante, acho que
um deles lembrou ou já sabia que brasileiro não precisa de visto de
entrada desde 2004, aproximadamente. Ou seja, há um bom tempo o
policial do aeroporto que me barrou não via ou se deparava com um
brasileiro tentando pegar avião por lá. E me liberou sorrindo.
Fiquei pensando se em Ulan Ude teria consulado brasileiro em caso de
necessidade. Claro que não.
Normalmente
entrei no avião, sempre sentando à janela, e pronto pra voltar pra
Moscou e depois Brasil. A sucata voadora começou acelerar, e quase
no final da pista, já com velocidade de decolar, a turbina ao lado
do meu ouvido explodiu, e logo em seguida o piloto montou no freio e
o descrente que aqui escreve rezou pra não acabar a pista, pra não
pegar fogo, pra não rodar, e por fim, guinou forte para a esquerda,
pois já não havia pista, mas sim cerca e mato. Pensei que se
tivesse decolado ou se não fosse possível parar, a frase do
Guimarães Rosa estaria profetizada no quadro do Hostel que eu havia
deixado três horas atrás. Foi a única vez que realmente tive medo
de morrer, e por horas até o próximo avião fiquei com receio nas
coragens.
Depois
de três horas de espera e total falta de contato inteligível,
fiquei sabendo que somente teria um novo avião doze horas depois, já
que o avião sucata não teria reparo, e o novo viria de Moscou
exclusivamente para pegar os passageiros, pois só havia um voo por
dia para a capital russa, e esse voo dura sete horas.
Ficar
quinze horas na rodoviária de Lavras, ou melhor, no aeroporto de
Ulan Ude, seria estafante. Mas a sorte veio, e já que nenhum
funcionário do aeroporto falava inglês, procurei algum passageiro
pra eu me informar sobre tudo. Vi dois jovens com uma camiseta da
academia que eu joguei tênis vinte anos atrás nos EUA, portanto
falariam inglês. E quando perguntei se eles falavam eles disseram
“claro que sim”. Coisa boa.
E
melhor ainda que a companhia russa disponibilizou um Hotel na Cidade
pra alguns passageiros, e essa família russa me colocou no meio
deles, e fomos todos juntos descansar por algumas horas para depois
voltarmos para o aeroporto. Detalhe que o Hotel era o único cinco
estrelas da cidade, e descansei, consegui tomar banho, comer, tomar
café, tudo em um local limpo que eu não via há dez dias. Então,
foi bom explodir a turbina.
Ainda
me foi explicado por esta família, que este mesmo avião dois dias
atrás havia tido um problema grave no motor, e eles se negaram a
decolar, pedindo pra saírem do avião já fechado, no pátio do
aeroporto. Ou seja, essa era a segunda tentativa daquela família
sair de Ulan Ude. E eu esperava que a terceira deles fosse somente a
minha segunda, e que desse tudo certo, e deu.
Essa
é a famosa viagem no tempo, e eu fiz, pois o avião decolou dez
horas da noite com destino a Moscou, e com sete horas de duração, e
por causa dos fusos horários à esquerda(seis), que diminuíam,
pousei em Moscou, onze da noite, mas depois de sete horas de voo. Meu
corpo estava mais desajustado ainda.
Já
em Moscou, passei no Hostel pra pegar minha mala que havia deixado
lá, e de manhã cedo ir pro aeroporto. Lembro que a Vanessa me
mandou uma mensagem falando que havia tido um atentado terrorista no
aeroporto de Istambul um dia antes do meu voo, e fiquei meio sem
entender, pois não havia acessado a internet. Logo depois minha mãe
ligou no meu celular, chamada normal, estava nervosa, pois o atentado
terrorista tinha matado quarenta e quatro pessoas horas atrás, e pra
lá eu estava indo em poucas horas. Aí sim vi a gravidade da
situação, e falei pra ela se acalmar, dizendo que se teve um
atentado terrorista hoje, seria quase impossível ter outro, no mesmo
lugar, vinte e quatro horas depois. A Vanessa estava uma pilha, pois
ela já sabia do problema no avião, pois viu que durante horas no
site flight radar que meu voo não saía de Ulan Ude, e eu não tinha
internet no meu telefone pra avisar. Só consegui explicar pra ela do
Hotel. Dei trabalho pra todo mundo.
Com
isso, voei pra Istambul, e chegando lá, meu avião, por ter vindo da
Rússia, e um dos terroristas do dia anterior tinha nacionalidade
chechena, foi parado fora da área normal, e vi que havia muitos
policiais, e quando descemos, a coisa ficou tensa.
Mais
de dez cachorros e homens armados nos abordaram e revistaram, em uma
área longe do terminal, e depois nos colocaram no ônibus, e tudo
deu certo. O aeroporto estava tentado voltar à normalidade, mas
parecia aeroporto militar de tanta gente armada.
Tranquilo,
pois em algumas horas eu teria quase quatorze horas de voo até São
Paulo e depois BH... eu já havia passado a noite anterior deitado em
um pufe no aeroporto de Moscou esperando meu voo, e tive até que
colocar despertador pra eu não perder o horário.
Cheguei
em SP, e no dia seguinte BH, e durante o voo de SP pra BH, o
passageiro ao meu lado falou com uma pessoa: ”Cansativo demais
isso aqui viu, tá louco, ainda tenho que pegar mais um voo pra
chegar em Montes Claros”. Juro que ouvi isso, então fiquei quieto
e dormi mais uns 20 minutos até pousar... Mal sabia aquela pessoa de
onde eu estava vindo e se me perguntasse diria que acabei de chegar
do fim do mundo!
Dedico
todos estes relatos à minha guria Vanessa, que teve a grandeza
enorme de saber que sonho de criança não se pode negar, e que sabe
que eu posso ir bem longe, mas sempre saberei o caminho de volta. Eu
a levarei quem sabe um dia neste mesmo lago, porque me faltou fazer
uma coisa, que era mergulhar profundo..
Lembro
minha mãe, que se mais nova, acho que faria o mesmo.
Agradeço
à Barbara por publicar essas minhas impressões, pois não tenho
redes sociais. Ela é uma das pessoas que sabem por que eu fui lá.
E
uns amigos russos que já se foram, mas estão sempre perto: Fiodor
Dostoievski, Lev Tolstoi, Vladmir Nabokov, Anton Tchekhov. Melhor má
companhia que essa não há.
Julho
de 2016
Stenio