sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

É tão bom ver a morte de perto... e continuar vivendo!!

Parte 5  
 
De Irkutskt até Ulan Ude no trem Transiberiano
De Ulan Ude até Moscou de AirBus colado com durepox e turbina estourada

Agora rumo a Ulan Ude, perto da fronteira com a Mongólia, na república da Buriácia, onde você encontra os buriatis, que quando crianças parecem uns ursinhos pandas do olho puxado, bem bonitinhos e de bochecha vermelha. É a mistura do russo com o mongol, povo mais resistente e bravo do mundo, dizem. 

 
O trecho da minha viagem de trem durou cerca de nove horas, mas a origem desse trem era Moscou, e o ponto final, a cidade de Vladivostok, no mar do Japão. Então, quem pega essa viagem desde o início, e vai até o final, percorre mais de nove mil quilômetros, em sete dias ininterruptos de viagem. Essa é a Tansiberiana, que desde criança queria ver, e é tanto trem que até um mineiro cansa. Acho até que um mineiro nessa viagem pode ter uma overdose de tanto trem!!






A viagem foi boa, e mesmo passando fome, acompanhei na janela esquerda as vistas do Lago Baikal, durante horas, parado no corredor do trem. Sentimentos confusos de perplexidade e incredulidade tomam espaço, pois quando eu realizo sonhos antigos como esse, tenho a sensação de não conseguir separar a realidade vista com a realidade imaginada, e uma se sobrepõe à outra, tornando-se uma névoa que busco dissipar com esforço, mas impossível de precisar com clareza, sobrando, por fim, uma sensação de completude e realização, que te faz aceitar mais facilmente sua finitude. 




Chegando em Ulan Ude, depois de muito achei meu Hostel, outra espelunquinha barata que eu precisava para dormir. Desta vez dormi por estafa depois de comer em um bom restaurante, tendo caminhado por meia hora para tirar umas fotos, e nada mais, pois o principal ponto da cidade era o busto de Lenin, maior do mundo, com quarenta e duas toneladas. Gigantesco.

minha higiene pessoal
hostel


Dia seguinte seria tomar café cedo e ir para o aeroporto, pegar o voo para Moscou, para depois ir para Istambul, depois São Paulo, depois BH. Pelo menos esse era o plano. E tudo bem tranquilo, mas não foi tanto.


Saindo do Hostel deixei escrito no quadro de recados meu nome, data, cidade, e uma frase. Eu sempre me lembro dessa, inclusive já falei nestes meus relatos, que “VIVER É NEGÓCIO PERIGOSO”, e é, mas vale a pena.


Chegando ao aeroporto, que parecia a rodoviária de Lavras, quando no momento do embarque, fui barrado por uma policial após eu ter mostrado meu passaporte na área anterior do salão de embarque. Ela folheou várias vezes e em russo falou algumas coisas. Não adiantou nada, e depois ela falou uma palavra que todos entendem, VISA, e eu disse em inglês que eu não tinha VISA, aí a coisa piorou, e ficamos olhando um pra cara do outro.

Acontece que ela chamou outro policial pra explicar provavelmente que eu não tinha o visto de entrada na Rússia, e isso seria inaceitável pra ela, eu acho.
Novamente tentei explicar em inglês que eu não precisava de visto de entrada pra Rússia, dizendo que eu era do Brasil. Aí sim a coisa começou a se resolver, pois depois dos policiais conversarem bastante, acho que um deles lembrou ou já sabia que brasileiro não precisa de visto de entrada desde 2004, aproximadamente. Ou seja, há um bom tempo o policial do aeroporto que me barrou não via ou se deparava com um brasileiro tentando pegar avião por lá. E me liberou sorrindo. Fiquei pensando se em Ulan Ude teria consulado brasileiro em caso de necessidade. Claro que não.
Normalmente entrei no avião, sempre sentando à janela, e pronto pra voltar pra Moscou e depois Brasil. A sucata voadora começou acelerar, e quase no final da pista, já com velocidade de decolar, a turbina ao lado do meu ouvido explodiu, e logo em seguida o piloto montou no freio e o descrente que aqui escreve rezou pra não acabar a pista, pra não pegar fogo, pra não rodar, e por fim, guinou forte para a esquerda, pois já não havia pista, mas sim cerca e mato. Pensei que se tivesse decolado ou se não fosse possível parar, a frase do Guimarães Rosa estaria profetizada no quadro do Hostel que eu havia deixado três horas atrás. Foi a única vez que realmente tive medo de morrer, e por horas até o próximo avião fiquei com receio nas coragens.

Depois de três horas de espera e total falta de contato inteligível, fiquei sabendo que somente teria um novo avião doze horas depois, já que o avião sucata não teria reparo, e o novo viria de Moscou exclusivamente para pegar os passageiros, pois só havia um voo por dia para a capital russa, e esse voo dura sete horas. 
 
Ficar quinze horas na rodoviária de Lavras, ou melhor, no aeroporto de Ulan Ude, seria estafante. Mas a sorte veio, e já que nenhum funcionário do aeroporto falava inglês, procurei algum passageiro pra eu me informar sobre tudo. Vi dois jovens com uma camiseta da academia que eu joguei tênis vinte anos atrás nos EUA, portanto falariam inglês. E quando perguntei se eles falavam eles disseram “claro que sim”. Coisa boa.

E melhor ainda que a companhia russa disponibilizou um Hotel na Cidade pra alguns passageiros, e essa família russa me colocou no meio deles, e fomos todos juntos descansar por algumas horas para depois voltarmos para o aeroporto. Detalhe que o Hotel era o único cinco estrelas da cidade, e descansei, consegui tomar banho, comer, tomar café, tudo em um local limpo que eu não via há dez dias. Então, foi bom explodir a turbina.
Ainda me foi explicado por esta família, que este mesmo avião dois dias atrás havia tido um problema grave no motor, e eles se negaram a decolar, pedindo pra saírem do avião já fechado, no pátio do aeroporto. Ou seja, essa era a segunda tentativa daquela família sair de Ulan Ude. E eu esperava que a terceira deles fosse somente a minha segunda, e que desse tudo certo, e deu.
Essa é a famosa viagem no tempo, e eu fiz, pois o avião decolou dez horas da noite com destino a Moscou, e com sete horas de duração, e por causa dos fusos horários à esquerda(seis), que diminuíam, pousei em Moscou, onze da noite, mas depois de sete horas de voo. Meu corpo estava mais desajustado ainda.
Já em Moscou, passei no Hostel pra pegar minha mala que havia deixado lá, e de manhã cedo ir pro aeroporto. Lembro que a Vanessa me mandou uma mensagem falando que havia tido um atentado terrorista no aeroporto de Istambul um dia antes do meu voo, e fiquei meio sem entender, pois não havia acessado a internet. Logo depois minha mãe ligou no meu celular, chamada normal, estava nervosa, pois o atentado terrorista tinha matado quarenta e quatro pessoas horas atrás, e pra lá eu estava indo em poucas horas. Aí sim vi a gravidade da situação, e falei pra ela se acalmar, dizendo que se teve um atentado terrorista hoje, seria quase impossível ter outro, no mesmo lugar, vinte e quatro horas depois. A Vanessa estava uma pilha, pois ela já sabia do problema no avião, pois viu que durante horas no site flight radar que meu voo não saía de Ulan Ude, e eu não tinha internet no meu telefone pra avisar. Só consegui explicar pra ela do Hotel. Dei trabalho pra todo mundo.
Com isso, voei pra Istambul, e chegando lá, meu avião, por ter vindo da Rússia, e um dos terroristas do dia anterior tinha nacionalidade chechena, foi parado fora da área normal, e vi que havia muitos policiais, e quando descemos, a coisa ficou tensa.
Mais de dez cachorros e homens armados nos abordaram e revistaram, em uma área longe do terminal, e depois nos colocaram no ônibus, e tudo deu certo. O aeroporto estava tentado voltar à normalidade, mas parecia aeroporto militar de tanta gente armada.
Tranquilo, pois em algumas horas eu teria quase quatorze horas de voo até São Paulo e depois BH... eu já havia passado a noite anterior deitado em um pufe no aeroporto de Moscou esperando meu voo, e tive até que colocar despertador pra eu não perder o horário. 
 
Cheguei em SP, e no dia seguinte BH, e durante o voo de SP pra BH, o passageiro ao meu lado falou com uma pessoa: ”Cansativo demais isso aqui viu, tá louco, ainda tenho que pegar mais um voo pra chegar em Montes Claros”. Juro que ouvi isso, então fiquei quieto e dormi mais uns 20 minutos até pousar... Mal sabia aquela pessoa de onde eu estava vindo e se me perguntasse diria que acabei de chegar do fim do mundo! 



 
Dedico todos estes relatos à minha guria Vanessa, que teve a grandeza enorme de saber que sonho de criança não se pode negar, e que sabe que eu posso ir bem longe, mas sempre saberei o caminho de volta. Eu a levarei quem sabe um dia neste mesmo lago, porque me faltou fazer uma coisa, que era mergulhar profundo..

Lembro minha mãe, que se mais nova, acho que faria o mesmo.

Agradeço à Barbara por publicar essas minhas impressões, pois não tenho redes sociais. Ela é uma das pessoas que sabem por que eu fui lá.

E uns amigos russos que já se foram, mas estão sempre perto: Fiodor Dostoievski, Lev Tolstoi, Vladmir Nabokov, Anton Tchekhov. Melhor má companhia que essa não há.

Julho de 2016
Stenio




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